ATENÇÃO: ESSA É UMA ROMANTIZAÇÃO DE UM RELATO
Quando o outono avança sobre a mata úmida, trazendo mantos de neblina
para aconchego das paisagens, o mundo se torna novamente convidativo
para aqueles espíritos mais introspectivos. Passada a euforia do verão
com suas férias, cachoeiras e infinitas cervejas partilhadas sob sol
quente e voo das butucas, a natureza convida outro tipo humano para sua
casa. Convida aquelas pessoas que, mais recolhidas em si mesmas, gostam
do silêncio, do frio, das névoas e das longas caminhadas meditadas
pelos trilhos. Os locais, antes cheios de jovens animados, davam espaço
para aqueles que precisam por em movimento o pensar, trabalhando-o da
mesma forma que o agricultor trabalha sua terra.
Naquelas tardes nubladas onde o ar é pesado mesmo
sem anunciar chuva, volta e meia, algum pensativo jovem caminhava pelos
dormentes dos trilhos, entre aqueles dois pedaços de metal que seguiam
infinitamente cortando o Contestado. Já há muito tempo, no fim dos anos
90, um jovem, com seus 26 anos, seguia por esse caminho, invocando em
sua mente os ambientes de um filme russo que vira há pouco tempo no
cineclube local, Stalker (1979). Afinal, os locais possuíam certa
semelhança em seu clima pesado e nublado, nos infinitos trilhos, na
verde vegetação, na desolação fria e nos túneis onde pingos eternamente
se desprendiam do teto e caíam em poças de água na escuridão do túnel,
fazendo seu som ecoar pelo breu. O filme era baseado na obra dos Irmãos
Strugatsky (1972) e relatava a existência de Zonas na Terra que, após
receberem a visita de entidades alienígenas, adquiriam propriedades
anômalas cheias de mistério. É claro que aquela porção de terra entre o
Planalto Norte de Santa Catarina e o Centro Sul do Paraná não recebeu
nenhuma visita ou consequência dessa natureza - até onde se sabe -, mas
certamente contava com sua fração de mistérios que podiam fascinar
aqueles com tempo e sensibilidade para notar.
Muitas histórias habitavam aqueles túneis e trilhos.
Trabalhadores falecidos no local enquanto expandiam a linha férrea,
estranhas presenças que surgiam junto às chamas das fogueiras pela
noite, assovios misteriosos que rompiam o ar, criaturas
inclassificáveis que vagavam silenciosamente pela mata, fogos-fátuos,
OVNIs e ritos mágicos conduzidos por grupos estranhos. Era normal ver
oferendas a entidades afro-brasileiras em fundos buracos na rocha,
assim como se viam símbolos indecifráveis esculpidos com algum fim
ignorado nas pedras. Os trilhos, onde tudo isso tem lugar, costumam
ficar em nível mais alto que as matas que o acompanham dos dois lados,
sendo também cercados, em alguns momentos, por altas formações
rochosas. Frequentemente, esses locais mais baixos de mata são pontos
escuros onde ninguém ousa se aventurar durante as caminhadas. Contudo,
mais de uma vez pessoas que passeavam pelos trilhos viram pessoas
misteriosas reunidas nessas depressões escuras de mata ao lado do
trilho, fazendo o que parecia ser algum tipo de rito, do qual não se
tem informações, em algum horário inusitado como às 5 da manhã. Enfim,
não se sabia se o percurso dos trilhos, por sua história carregada de
tristezas, tinha algo de especial para atrair anomalias ou se a mente
das pessoas, vendo-os como local de mistério, fez questão de,
inconscientemente, atribuir a ele essa aura sinistra.
O mencionado jovem era ciente das histórias que
contavam e sentia nisso um incentivo para suas caminhadas solitárias.
Algumas pessoas simplesmente sentem conforto existencial ao se deparar
com o indefinido que habita a faixa liminal entre a vida e a morte,
entre a linguagem e o inefável. No entanto, não se nomeia o jovem aqui,
pois não é bem ele o protagonista da história. Em alguns casos, o papel
de protagonista deve caber à própria paisagem que, em sua lógica torta
e não especulável, compreende níveis de agência muito maiores que os do
homem que transita entre seus limites. Assim, fisgado por suas
urgências interiores - ou assim julgava, pois para o homem é sempre ele
a gênese das próprias vontades -, o jovem seguiu para os trilhos numa
tarde outonal em que contava com tempo livre ao seu dispor.
Era um domingo melancólico, no tempo em que as ruas
do centro de Porto União da Vitória eram quase todas compostas por
paralelepípedos que, umedecidos pelo ar carregado e pelas garoas,
reluziam no crepúsculo a luz dos postes amarelos que se acendiam ao
cair da noite. As tardes naqueles domingos eram sossegadas, apenas se
ouvia um ou outro carro passando lá ao longe. Pais de família se
reuniam encostados em algum balcão de bar sob a luz fraca enquanto um
rádio ou uma televisão compunham aquele ambiente quase silencioso
enquanto as garrafas antigas de pinga dispostas nas prateleiras
observavam emudecidas as faces inebriadas dos seus futuros algozes. Os
mais jovens se reuniam junto ao Dal'Bó e ao X-Burguer, onde fechavam a
rua em viva celebração dos seus anos de ouro que jamais se repetiriam;
era uma animação eufórica, mas concentrada. O restante da cidade, desde
as quadras que cercavam aquele lugar até os mais distantes rincões,
permanecia mergulhado na quietude domingueira. É uma sensação que não
se conhece mais nestas cidades que tanto cresceram aquela de se afastar
lentamente do festejar exaltado daquela única rua num dia quieto e ir
adentrando no silêncio do resto da cidade enquanto aquele burburinho
some no espaço e na memória. Sem dúvidas, aquele era um mundo mais
silente e as pessoas lembram com saudosismo daqueles momentos de festa
onde as pessoas se congregavam e, diante da solidão de uma época menos
efusiva e de menos tecnologia, reuniam-se festejando com mais
significado e conectividade do que haveria algumas décadas depois.
Todavia, para o jovem, esses locais e momentos não
lhe respondiam as questões mais íntimas do momento. Cansado das
pequenices cotidianas, no meio da tarde cinzenta, saiu de casa avisando
apenas sua mãe e tomou rumo em direção aos trilhos, que não ficavam
longe da sua casa. Tomando a entrada no pé do Morro da Antena, ele
seguiu pelos trilhos, deixando a cidade e penetrando mais e mais na
vegetação que acompanhava o trecho. Algo lhe incitava, aos poucos e sem
que soubesse, pensamentos de perseguição em sua mente, como se todo o
mundo fosse composto por milhares de olhos a cada metro quadrado, todos
eles olhando para si. É verdade que, às vezes, surge a sensação de que
algo desconhecido insufla nossos pensamentos em algum estágio anterior
ao seu irromper na consciência, e era essa impressão que o jovem tinha
naquele dia, como se algo externo o impregnasse com aquelas impressões.
Ficava pensando por que seus pensamentos se voltavam tão obcecados com
aquela temática, com aquela sensação de que algo horrível podia
acontecer. Em processos secundários de pensamento, pensava se isso não
era algum sinal ou alguma indicação mandada de algum lugar ou de alguma
razão superior o alertando sobre qualquer coisa ruim. Não seria
possível que aquela sua vontade - quase um chamado – de fazer uma
caminhada naquele dia resultasse em pensamentos tão ruins, mas o que
acontecia para se sentir assim?
Um tanto nervoso, já sem prestar tanta atenção na
formidável natureza que se erguia ao seu redor, seguiu seu caminho -
que não tinha destino, consistindo em caminhar até achar que estava de
bom tamanho, dar meia-volta e retornar. Crescia nele aquela impressão
que se assemelha a um arrepio e que faz parecer haver, nas
proximidades, algum tipo de presença ameaçadora ou mesmo de natureza
desconhecida. Ainda não anoitecia, mas já se sentia que em breve a
noite começaria a mandar seus batedores em forma de crepúsculo. Pensava
que talvez devesse voltar... Era uma caminhada introspectiva, como
tantas que já fizera, o que havia dado errado? As respostas pessoais
que buscava seriam respondidas apenas com essa sensação horrível e
penetrante de deslocamento e ameaça? Deslocamento e ameaça
simplificavam bem o que se passava, uma vez que ele não sentia estar
mais no mesmo local pelo qual sempre passeara. Nesse novo local, talvez
erigido como uma réplica diabólica dos trilhos que sempre cruzara,
parecia habitar alguma existência que nutria suas forças vitais desde o
mesmo local de onde se originam os pensamentos agressivos, o ranger dos
dentes, o cerrar dos punhos e o instinto de destruição.
Um dos lugares ao lado dos trilhos, tomado pela escuridão em plena luz do dia
Agora o crepúsculo já era realidade, colorindo as
nuvens de cor azulada, mas o rapaz nem havia chegado até a estação de
Engenheiro Mello, onde talvez a vista das casas e o som dos sempre
atentos cães da vila lhe trouxessem à força novamente à realidade.
Quase chegando na curva que levava ao primeiro túnel de trem, passou
por uma dessas descidas obscuras ao lado do trilho e que encerram em
algum espaço relativamente aberto mergulhado na escuridão entre xaxins
e árvores volumosas sempre úmidas. Sequer olhava para os lados,
preocupava-se apenas em chegar logo à Estação Engenheiro Mello para
poder pegar a estrada e voltar para casa pelo Bela Vista e depois São
Pedro, deixando para trás aquela zona que lhe perfurava a sanidade
naquele dia. Porém, quando passava por ali, ouviu um som que vinha lá
de baixo, do fim daquela descida escura ao lado dos trilhos. O som que
ouviu era como um sussurro vindo de mais de uma pessoa. Até pensou se
tratar de impressão da sua mente, ocasionada pelo estado de tensão
imposto desde que pisou nos trilhos, mas logo confirmaria que tudo era
- mais que - real.
Os sussurros, sem dúvida, vinham lá de baixo, mas,
sem perceber, ele se perguntava se não eram resultado da sua mente ou
de algum tipo de invasão produzida por um elemento alienígena à sua
consciência. As palavras emitidas lá de baixo não foram compreensíveis,
mas o som fez com que voltasse sua mente imediatamente à direita onde
só viu escuridão e a cobertura da vegetação. Seguiu com o movimento da
cabeça, olhando para baixo, na descida, onde, por conta da luz
diminuída da hora, mal se via o chão que devia ficar a 7 metros abaixo
da altura do nível dos trilhos onde estava. Lá embaixo, no meio daquela
escuridão, só conseguiu discernir duas figuras humanas numa pequena
abertura em meio à vegetação. A única fonte de luz a ele visível foi a
que parecia vir de uma vela, mas a vela provavelmente estava atrás de
algum tronco, fazendo com que o jovem não pudesse ver a chama, mas
apenas o pouco de luz indireta que conseguia iluminar além de onde a
vela estava. Era uma luz muito fraca. Mas o que faziam aquelas duas
pessoas naquele lugar em um domingo? Ainda mais naquele horário pouco
convidativo enquanto o resto da cidade buscava alguma forma de lidar
com a melancolia intrínseca ao último dia do fim-de-semana?
O fato de ter identificado as duas figuras como
pessoas naqueles rápidos segundos é um exemplo da comodidade do
raciocínio: parecem pessoas, consequentemente são pessoas. A verdade é
que, em situações como essas, nada é tão certo assim; há barreiras que
não existem. De qualquer maneira, a visão daquelas pessoas lhe assustou
profundamente, pois o fato de ali se encontrarem era algo próximo ao
contrassenso, pois carecia de sentido ao seu entender. No entanto, pela
lógica, não parecia nada ameaçador desde que não tentassem lhe acertar
um tiro, uma vez que eles estavam abaixo do seu nível e precisariam
subir uma trilha um tanto íngreme caso desejassem se aproximar. Ficou
ali poucos segundos tentando desvendar mais a situação, mas logo se
sentiu compelido a avançar ao seu destino, deixando aquele ambiente
anormal e aterrorizante para trás. Por dentro, sua alma tremia e um
longo calafrio subia com força incontrolável sua espinha, de modo que
sentia como se fosse eriçado, da parte traseira da sua cabeça até o
início da coluna, algum tipo de órgão inexistente que se expunha ao
vento frio somente agora. Em um só momento, tomou ar rapidamente e se
voltou num salto para o trilho, encarando a direção que deveria seguir
para chegar à vila que não ficava longe dali. No primeiro momento em
que se voltou para essa direção e se preparou para dar o primeiro
passo, parou de imediato ao ver, a uns cinco metros à sua frente, a
figura de um menino aparentando ter nove anos de idade. O guri estava
trajado com uma longa veste branca que parecia uma camisola, tinha
cabelos loiros e parecia ter perdido um dos olhos, tendo ele fechado
sob a marca de uma longa cicatriz. Atrás do menino, um homem de trajes
negros, não sendo possível identificar se um terno ou algum tipo de
capote escuro. As feições do homem eram quadradas, irredutíveis e
enrugadas, encarando o rapaz sem qualquer movimento.
Naquela situação que demorara apenas segundos para
transcorrer, o jovem não fazia ideia de como reagir, pois bloqueavam
seu caminho e retornar poderia ocasionar algum tipo de perseguição,
acreditava. A sensação que lhe acompanhara desde o começo do passeio
agora atingira o pico; sentia que aquelas presenças que intuiu lá atrás
estavam próximas, à frente e à direita de onde se encontrava - e vai lá
saber onde mais. Eis que, sem uma palavra pronunciada por ele ou por
qualquer um dos demais presentes, a criança, sem qualquer tipo de
aviso, correu em sua direção enquanto o adulto atrás dela permanecia
imóvel, com um ar de seriedade que dava a entender um leve sorriso.
Assim que ela deu o segundo passo da corrida, carregando um estranho
sorriso no rosto, o jovem perdeu sua consciência.
Na mente do rapaz, ele apenas piscara o olho, pois,
tanto o desfalecer quanto o despertar ocorreram, literalmente, num
piscar de olhos. Contudo, ao abrir novamente os olhos, ele já não
estava no local onde havia fechado suas pálpebras. Havia apenas
escuridão. Desesperado, olhou à direita: nada. Quando olhou à sua
esquerda, viu que lá em cima estavam os trilhos, acima dos quais podia
distinguir o céu noturno com algumas nuvens avermelhadas. Ele estava
exatamente no local onde vira as duas figuras antes. Mas já não era
mais crepúsculo, ele se encontrava sozinho no coração do silêncio da
noite sem qualquer resquício de presença estranha. Pegou a correr
desesperadamente em direção ao barranco que levava aos trilhos,
agarrando com mãos trêmulas as samambaias que cresciam naquela terra
úmida de barranco, resbalando diversas vezes. Não havia calma, mas
apenas o desespero de fugir daquela situação confusa na qual algum
mistério do destino o havia projetado.
Com muito esforço, encontrava-se nos trilhos,
cercado pelo silêncio opressor daquela escuridão, sem encontrar
qualquer vestígio de outro vivente nas proximidades. Mesmo que não
sentisse aquela comunicação obscura do ambiente para consigo, mesmo não
sentindo mais a presença sinistra que se apresentara desde que entrara
nos trilhos, seu coração palpitava ao pensar na bizarra experiência
passada. O medo ocupava a totalidade da sua alma e, embora a vila
ficasse pouco à frente, não queria ir até ela e passar por aquele
sinistro túnel abandonado que existia no caminho. O que poderia
aguardar à espreita naquela escuridão total? Não, não queria nem pensar
no que poderia rastejar por ali. A única opção que tinha era retornar
pelo mesmo caminho que viera, seguindo pelos trilhos até chegar à
cidade, numa caminhada que, feita rapidamente, poderia tomar meia-hora
do seu tempo. Aliás, não sabia nem que horas eram, pois não levava
consigo um relógio e naquela época não havia para o homem comum um
utensílio tão útil como o celular.
Andou rapidamente na escuridão, tendo a parca luz da
noite para distinguir pobremente as silhuetas na escuridão. Um passo
atropelava o outro e por várias vezes tropeçava ou fincava fortemente
os pés na lama. Caiu algumas vezes. Caminhar nos trilhos é uma
experiência interessante, sobretudo à noite. O caminhante se dispõe em
uma abertura limpa que avança para frente e para trás, ao mesmo tempo
em que se fecha totalmente nas laterais pela floresta que ora sobe em
um barranco e ora desce em algum ambiente obscuro e úmido como aquele
no qual acordara. A sensação crescente é de que algo sempre está
observando e, de qualquer um desses lados, pode saltar até o ser que,
estando descoberto em evidência na abertura dos trilhos, torna-se alvo
fácil de alguma existência ameaçadora. E foi nessa disposição paranoica
que o espírito do jovem se manteve até colocar os pés na cidade.
Todavia, no fundo dos seus pensamentos, havia a impressão de que os
trilhos que passava agora não eram os mesmos que encontrara antes, como
se algo de fundamental tivesse mudado naquele local. Era como se a
paisagem não tentasse mais se comunicar com ele ou lhe sussurrar alguma
coisa horrível e quase indecifrável.
Sem mais problemas durante o percurso de retorno,
além das quedas e do estado de quase colapso nervoso em que se
encontrava, ele chegou à cidade e, depois, à sua casa. Já no lar,
encontrou sua mãe nervosa com a demora do filho, pois já passava da
meia-noite e ele não havia levado lanterna ou provisões. A ilusão de
conforto que a chegada segura ao lar proporcionava havia sido
substituída pela completa confusão mental. Pelos seus cálculos, entre
uma piscada e outra, no momento crítico da sua caminhada, haviam se
passado mais de cinco horas. De fato, o tempo havia se perdido ali.
Pensava e pensava e não conseguia entender como ele "acordou" em outro
local tão diferente de antes e depois de tanto tempo, e, o mais
impressionante, ainda de pé. O que haviam feito com ele? Não sentia
nada de diferente em si, não havia nenhuma dor e não viu nenhum sinal
diferente em seu corpo. Por que não se lembrava de nada passado nesse
longo tempo? Obviamente, não contou nada à sua mãe, que já estava
suficientemente preocupada com sua demora. Sem se alongar na conversa,
deu alguma desculpa envolvendo ter feito uma trilha com os amigos e se
estendido mais do que devia, indo dormir logo em seguida, ou tentar.
Foi uma das noites de sono mais difíceis da sua vida, pois, quando
conseguia finalmente dormir, era tomado de assalto por imagens
sinistras incompreensíveis, vendo, com os olhos da mente, seres
disformes, sorrisos sinistros brotados dos paredões de pedras, demônios
colossais submergindo do Rio Iguaçu e multidões sem rosto balbuciando
estranhos cantos enquanto subiam cabisbaixas os morros da cidade.
*
Partindo para além da história em si, percebe-se que
ela, como tantas outras, toca em um aspecto muito sensível do mundo dos
avistamentos peculiares. Se há um ponto de encontro entre visões de
alienígenas, demônios, criaturas anormais, homens de preto e outros
mistérios, ele está justamente nessa perda de tempo e de memória que
ocorre sem que se perceba. Na realidade, muitos dos relatos envolvendo
esse fenômeno são obtidos através de sessões de hipnose, onde a pessoa
resgataria – provavelmente de modo distorcido – o que aconteceu na
ocasião. O rapaz, hoje já homem sério beirando os 50 anos, não tomou
parte em nenhum tipo de processo de resgate mnemônico, pois, além de
desconhecer a existência dessas técnicas, só queria esquecer aquela
noite. Inclusive, demorou mais de cinco anos para colocar novamente os
pés sobre os dormentes do trilho, e o fez acompanhado; nunca mais fora
sozinho para lá ou para qualquer tipo de floresta fechada.
Alguns, como Whitley Strieber em Communion,
referem-se a essas presenças como "Visitantes", deixando em aberto qual
a natureza dessas aparições. Muitos acreditam que sejam extraterrestres
ou seres interdimensionais, mas a verdade é que pouco pode ser dito da
natureza de fato desses fenômenos. Apenas cabe ao homem especular de
que tipo de realidade provêm os Visitantes e que tipo de intenção eles
têm. Parece que eles podem tomar várias formas diferentes, talvez se
alimentando das expectativas cativadas no inconsciente do homem –
inconsciente que é condicionado culturalmente e, também, condicionador
cultural. No entanto, o fato é tão incerto que nem seria possível dizer
que o que tomara parte na realidade naquele dia pertencia à categoria
dos Visitantes. Isso porque, até hoje, circulam boatos de que, na
região, há estranhas ordens iniciáticas e cultos secretos alimentados
pelo sebastianismo do Contestado e por estranhos imigrantes do Leste
Europeu, detentores de conhecimento do oculto. Porém, desconhece-se que
práticas e que alterações da realidade esses homens e mulheres da
penumbra perseguiriam em seus ritos e se a possível existência de tais
grupos estaria ligada à estranha experiência relatada.
Há, ainda, que se realçar uma observação importante.
Muitos podem ler esse relato romantizado como algo sem pé nem cabeça,
faltando à história um desfecho ou uma cadência dentro do enquadramento
cultural que se produz nas grandes obras da literatura. O motivo é
muito simples. Se nem a realidade segue essas fórmulas, muito menos
seguiriam os avistamentos daqueles fenômenos que caminham mais do lado
de lá do que do de cá. Os relatos de aparições e avistamentos,
frequentemente, não possuem sentido algum: a pessoa está caminhando
pela rua sozinha quando avista, entre um poste e uma árvore, um homem
de três metros e cabelos loiros que sorri, esconde-se atrás do poste e
nunca mais é visto; a criança que vê pequenos seres vagando sem
propósito algum pela sala-de-estar na madrugada sem testemunhas. As
situações mais bizarras acontecem nesses encontros e perturbam a alma
da testemunha pelo resto da sua vida, como se fosse uma marca na alma
assegurando, de uma vez e para sempre, que nossa realidade é apenas um
constructo que busca garantir algum abrigo diante de um mundo de
fenômenos incompreensíveis e aparentemente sem fins à espreita na
floresta escura do Real que inicia logo depois da soleira da nossa
frágil morada erguida pelo racionalismo. Ao que tudo indica, foi
exatamente nessa porção de floresta além da soleira que nosso sujeito
esbarrou em seu contato, sendo conduzido até ali pelas misteriosas
conjunções do tempo, espaço e clima; pela agência indecifrável da alma
do Lugar.
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Rua Secondo Eleseo Bertoluzi, Rua Alcides Antonio Dalmédico, Rua Erwin Rautemberg, Rua Helmuth Müller, Rua Sebastião Venâncio