Nos anos 70, no ainda inexpressivo município de Mallet,
ocorreu fantástico acontecimento que ficou guardado apenas na memória e no
acervo oral daquele povo. Foi no Sul do Paraná, entre imponentes florestas de
pinheiros e clima ameno, lá onde se ergueu Mallet pelas mãos de eslavos, em uma
madrugada de março de 1975, que algo de inacreditável sucedeu. São apenas
testemunhos que sobrevivem na memória popular, carecendo da devida catalogação
formal, seja pela improbabilidade dos fatos ou pelo motivo de ter acontecido em
local tão ermo e de população humilde. É justamente por tal que surge a
necessidade de redigir esse breve texto coletando, a partir de relatos, o que
teria acontecido naquela tempestuosa madrugada.
O centro de Mallet em 1956
Naquele tempo, a cidade contava com poucos milhares de
habitantes, sendo a maioria de procedência rural. Ainda eram muito conservados
os valores e costumes trazidos do Velho Mundo por imigrantes eslavos que viviam
uma expressiva tradição religiosa e cultural. Aos domingos, a igreja ucraniana
mais antiga do Brasil tinha seus bancos de madeira cheios de fiéis que cantavam
velhas canções sacras no idioma materno enquanto o padre incensava o altar com
seu turíbulo, preenchendo as manhãs serenas de domingo com aroma santo. O povo,
em geral, dedicava-se às atividades campestres, cuidando das suas criações e
plantações, enquanto uma minoria conduzia negócios no modesto centro da cidade,
garantindo o funcionamento de armazéns e outros estabelecimentos. Em 1975, o progresso
ainda não era pujante nessa região, não passava nem perto disso, sendo algo
muito tímido e incapaz de competir com a força das antigas tradições, das
crendices e de um modo de vida enraizado na paisagem que lhe abrigava. Talvez
por isso que muitos tomem o acontecimento que será relatado como algo mítico,
pertencente aos tempos em que o orvalho do inconsciente encharcava as mudas
recém-plantadas da plena consciência racional moderna.
A época de março é conhecida como introdutória da grande
viragem do ano, quando o calor de verão abre passagem para o mundo invernal.
Lentamente, o vento começa a soprar mais gélido, os salgueiros ribeirinhos
começam a mudar de cor, as araucárias soltam suas carregadas pinhas e as blusas
de lã veem novamente a luz do dia. Naquele ano, não foi diferente; o outono
começava a soprar ainda tímido em 22 de março, quando chegava à região uma
frente fria que carregava, consigo, segredos de algum local desconhecido muito
mais ao Sul. No meio da tarde, já não se via o calor das horas após o meio dia,
tão costumeiro dessa época, mas um resfriamento da atmosfera acompanhado de um
tempo brusco lá em cima. O vento era forte e gelado, rebaixando a temperatura e
alertando a todos que pela frente podia vir tempestade. Contudo, anoiteceu e nada,
o vento continuou soprando e o céu noturno permaneceu velado pelas formações
nebulosas.
Típica família de Mallet em frente à sua casa em estilo europeu
Passadas as horas e chegado o tempo de se recolher nos
mundos oníricos que animam as noites, as pessoas foram aos seus aposentos e
fecharam bem as janelas e portas, temendo que uma tempestade pudesse tomar de
assalto à madrugada. O temor dos munícipes era acertado, pois foi por volta das
3 da manhã que o céu caiu furioso sobre as casas de madeira. O granizo veio
primeiro, despertando todos que sonhavam. Crianças levantavam temerosas e
buscavam seus pais para maior segurança. Todos esperavam, atentos, que aquela
tormenta passasse logo. As pedras batiam nos beirais, rompiam alguns telhados
mais frágeis e assustavam os animais. Porém, após alguns minutos, as pedras pararam,
ficando depositadas na grama e nas calhas. Vieram alguns minutos de silêncio
das pedras e de bravo soprar do vento. No entanto, foram poucos os minutos de
quietude, pois logo veio uma chuva, uma daquelas de pingos grossos e fortes que
batem com violência no mundo que cruza seu incontornável caminho. Casas que
tiveram seus telhados mais danificados, tinham goteiras começando a pingar no
assoalho; as pessoas corriam buscar baldes e vasilhas para conter a água. O
barulho da chuva era muito alto, mas era apenas a segunda coisa da noite para
se preocupar.
Algo de estranho seguia junto à chuva que caía. Apesar do
som alto dos pingos que caíam sobre as casas, algo mais engrossou a sinfonia da
tempestade. Eram sons abafados de corpos caindo, coisas que não vêm com a
chuva, coisas mais pesadas que pedras de gelo. Eram como sacos caindo do céu,
desabando sobre a terra e emitindo um som surdo, abafado, que inspirou
estranhamento nas pessoas que estavam acordadas em suas casas. Mas esses
barulhos estranhos não foram tão frequentes; aconteciam aqui e ali, fazendo
imaginar que alguma coisa havia caído lá fora por conta do vento. As pessoas se
convenciam de que não era nada de muito inusitado, mas ficavam ainda um pouco
apreensivas.
Enquanto seguia a chuva, agora um pouco mais fraca, as
pessoas começaram a ouvir sons do lado de fora das casas. Com crescente
nitidez, passaram a ouvir passos ao redor das moradias, somando mais nervosismo
àquele originado pela tempestade. Algo pisoteava as poças de água e rondava as
habitações, e muitas vezes o som fazia entender que era mais de uma
"coisa" a produtora dos passos. As pessoas se perguntavam que tipo de
gente sairia no meio daquela intensa tempestade para rodear – roubar, quem sabe
– as casas no meio da madrugada? E no escuro? Não havia sinal algum de luz lá
fora. Quem fica numa madrugada sem lua, em meio a uma tempestade, circulando
casas desconhecidas? Os cachorros, por vezes, desesperavam-se e era possível
escutar seus latidos exasperados e seus passos acelerados em direção a alguma
coisa noite adentro, mas logo e sem aviso paravam e se aquietavam assim que
alcançavam alguma posição, interrompendo sua corrida, dando a entender que o
seu alvo havia escapado.
Logo, começaram os sons sobre os telhados, como se
houvesse algo andando sobre as telhas. Andava um pouco e interrompia os passos,
como se procurasse alguma forma de entrar. Sem coragem de olhar lá fora, as
famílias ficavam juntas nos aposentos ouvindo aqueles sons estranhos e
improváveis que lançavam suas mentes em confusão. Os antes tímidos indícios de
presença estranha ao redor da casa em meio à chuva agora se manifestavam com
maior ênfase. Os passos eram acompanhados de constantes zumbidos que sofriam
interrupções irregulares, como se comunicassem algo entre si. Logo em seguida,
algo de mais surpreendente e inusitado ocorreu: as pessoas perceberam que algo
tentava abrir portas e mexer nas janelas. As “coisas” viravam as maçanetas e
arranhavam as janelas, sempre acompanhadas do estranho zumbido que, às vezes,
dava a entender que era emitido logo do outro lado da janela, depois daquela
fina proteção de madeira, por algum ente desconhecido que, embora reconhecido
pelos sentidos, os olhos preferiam não ver.
A situação passara de apreensiva para aterradora,
deliberadamente algo tentava ingressar nos lares. Algo que caminhava lá fora e
às vezes saltava, algo que arranhava as paredes e tinha algum tipo de
inteligência a ponto de saber no que consistia uma porta e sua maçaneta. Alguns
relatos falam de tentativas de abrir as janelas pelo lado de fora, instante em
que a família corria para trancá-las. Entre frestas da janela, apenas se viam
sombras e, muito raramente, quando acontecia de um relâmpago iluminar a noite,
uma coisa que muitos sequer ousam descrever. Era algo sobre duas pernas,
contando com 1,5m de altura e uma pele que parecia escura, sendo que alguns
falam de pelos e outros de uma pele rugosa. Concorda-se que aquelas coisas
andavam um tanto arcadas e tinham braços finos que se aproximavam dos joelhos,
estes sempre dobrados.
As gotas caíam nas poças já formadas e na terra molhada,
fazendo de tudo lama e aguaceiro. Os passos insistiam sobre a água e as mãos –
ou patas ou o que fosse – das criaturas persistiam no arranhar das casas de
madeira, buscando alguma chance de entrar. Dentro das casas, as pessoas
apavoradas. Alguns homens passavam a mão nas espingardas e tentavam alvejar as
criaturas, falhando e acertando apenas o breu da noite e a chuva que caía.
Desesperadamente, as crianças choravam enquanto seus pais tentavam, inutilmente,
acalmá-las com justificativas fracas e sem conseguir esconder o próprio
nervosismo. Muitos rezavam, colocavam-se de joelhos em frente aos ícones e
desfiavam orações em soluços, acreditando que a derradeira hora havia chegado.
Conta-se que até hoje ecoam na mente das testemunhas o zumbido irregular
emitido pelas criaturas e o som invasivo das garras arranhando as portas.
Após meia-hora de passos, batidas, arranhões e
misteriosos zumbidos, a chuva cessou. Junto com o encerramento da tempestade,
sem explicação alguma, todos os passos pararam. Não havia mais um som qualquer
daquelas entidades que tentavam uma invasão. Era como se, dados os últimos
pingos do céu, aquelas coisas tivessem embarcado nas nuvens frias novamente e
seguissem viagem pela aerosfera. Estabelecida a calmaria, ainda na escura
madrugada, ninguém teve coragem de sair das casas até que os primeiros raios de
luz alumiassem o campo, que fingia nada ter acontecido. Contudo, o cenário era
outro. Em volta das casas, estranhas pegadas que lembravam as deixadas por
galinhas, mas, obviamente, muito maiores, sempre deixando clara a morfologia
caracterizada por 3 dedos ou garras e a marcha disposta como por uma criatura
bípede. Nas paredes externas das casas de madeira, vários arranhões, alguns bem
fundos. Um pouco longe das casas, no local das criações, algumas foram
encontradas mortas, às vezes tendo os corpos sem sangue empilhados em um canto
do aprisco. Durante a madrugada, não se escutou um único grito de animal aflito
sendo predado, o que deixa todo o quadro ainda mais desafiador. Aquele clima
úmido e ensolarado da manhã incidindo sobre as tábuas de madeira tinha algo de
inédito; aquela sensação de que algo grande e único acontecera. Um daqueles
eventos raríssimos do qual nem sempre se sai vivo, mas do qual certamente
sempre se sai mudado.
Reconstrução das pegadas encontradas no outro dia
Lentamente, as famílias saíam de suas casas e iam ter com
as demais nas cercas dos vizinhos, nas estradas ou no centro, verificando, pelo
caminho, o estrago deixado pela noite. Caixas, balaios e outras coisas que
ficavam fora das casas estavam revirados. Pegadas desconhecidas pelo chão e
arranhões de profundidade nas janelas e portas eram comuns. Qual a surpresa dos
já perturbados munícipes quando percebem que algumas portas e janelas estavam
abertas e essas casas vazias de seus habitantes? Não eram muitas, certamente,
mas pareceu que nem todas as famílias tiveram a mesma sorte. Um rapaz solteiro
de ascendência polonesa que morava sozinho em uma casa próxima do centro jamais
foi encontrado. Uma família de 3 membros da zona rural também teve seus rastros
apagados naquela noite. Houve outros casos isolados do mesmo tipo. Alguma
quantidade de sangue foi encontrada pelo chão de algumas das casas de onde seus
moradores desapareceram naquela madrugada. Mesmo que nenhum objeto de valor
tenha desaparecido, oficialmente se atribuiu o ocorrido a um grupo de ladrões
que tomou como oportunidade essa noite de tempestade para praticar crimes na
região. Quanto às igrejas, nada foi relatado pela população, sendo que há frequente
insistência na versão de que as igrejas não tenham sido atingidas pelo fenômeno
por serem locais sagrados.
Um episódio próprio é o do armazém no centro da cidade. O
responsável por fechar a bodega no fim do dia acabou por se esquecer de trancar
uma das portas antes de sair. Durante a madrugada, o local foi totalmente
revirado, como se algo fosse buscado lá dentro. Sacos de arroz e farinha
estourados pelo local, garrafas quebradas e até um rato fora encontrado morto,
seco, sem sangue, na despensa. Onde foi derrubada a farinha, aquelas mesmas
pegadas inusitadas encontradas pelos arredores da cidade. Sem entender nada e
sem a quem culpar pelo prejuízo na mercearia – afora o pobre funcionário que se
esqueceu de trancar a porta –, as pessoas se perguntavam o que foi capaz de
fazer tamanho estrago por toda parte. E, mais importante, aonde foram as
pessoas desaparecidas? E os animais mortos? Como, em meia-hora, tanta coisa
poderia ter sido feita? Respostas que jamais seriam satisfeitas. Apenas viriam
à luz explicações pífias com intuito de acalmar os ânimos da população foram
dadas.
Nas noites seguintes, a população ficou de prontidão.
Fizeram vigília, empunharam armas, montaram armadilhas e deixaram os lampiões
de querosene acesos do lado de fora. Contudo, a única visita foi o silêncio.
Como em toda frente fria, à chuva sucedeu o frio. Apenas o frio, nada mais.
Nunca mais a cidade viu qualquer coisa semelhante, embora, por anos, as pessoas
mais velhas ficaram apreensivas esperando que coisa parecida viesse a acontecer
novamente. Conta-se que até a atualidade, nesta época em que pouquíssimos são
os olhos vivos que testemunharam a "Revoada", ainda é possível ver os
arranhões em casas muito antigas. Das pegadas, nada foi preservado. Os
desaparecidos foram dados como assassinados, mesmo que jamais tenha sido
encontrado algum corpo humano. Os animais destroçados e deixados sem uma gota
de sangue foram tidos pelas declarações oficiais como vítimas de predadores,
insultando a inteligência da população rural ao implicar na existência de algum
tipo de onça vampírica na região.
Estação de Mallet em 1980
Com o passar dos anos, essa experiência foi entrando no
terreno do mito e da fantasia, soando para os mais novos como qualquer crendice
"dos antigos" ou uma distorção fantasiosa de ações propagadas por
sujeitos mal intencionados. No entanto, ficaram por explicar vários detalhes
mais espinhosos da narrativa: os animais, as marcas, as pegadas e o que foi
visto por aqueles que tiveram algum vislumbre dos integrantes da chamada
Revoada. Mais tarde, alguns atribuiriam a alienígenas a operação, enquanto
outros falariam de demônios ou animais desconhecidos e terceiros buscariam
explicações em coisas mais mundanas como uma grande armação ou uma tentativa de
furto em massa que acabou falhando.
Muito já se falou sobre formas de vida atmosféricas, mas nunca
algo foi cientificamente verificado dentro do tema. Seguem surgindo as teorias sobre
OVNIs como seres atmosféricos e de viajantes ocultos da aerosfera,
identificados em entidades que volta e meia aparecem nos folclores antigos.
Casos que ligam o envolvimento de Objetos Voadores Não Identificados e
estranhas criaturas não são tão raros. Em 1997, Carlos Alberto Machado, ao
pesquisar em tempo real o fenômeno chupacabras no Paraná, conseguiu capturar em
câmera VHS a aparição de uma bola luminosa no céu sobre uma fazenda onde, na
mesma noite, houve ataque às criações. O avistamento de criaturas insólitas
após a queda ou a aparição de objetos voadores desconhecidos não é incomum nos
relatos desses temas. Casos de mutilação de gado também não são nada raros,
sendo catalogados desde o século XIX no próprio Brasil.
Objeto filmado no Paraná em 1997, logo antes de um ataque a animais realizado por predador desconhecido
Seja qual for a explicação mais plausível para esses
momentos de terror que fogem à cotidianidade para fundar na memória dos
viventes uma exceção horrível, permanece a certeza de que há coisas que
acontecem e que transcendem nossa capacidade explicativa. Ao transcenderem
nossas possibilidades de interpretação, também removem dos nossos pés o solo,
fazendo questionar toda a estrutura da razão e o conforto da vida média humana.
Sabemos, assim, que nossas certezas tão enraizadas e tão arrogantes em seu
pedestal podem ser derrubadas e estilhaçadas a uma só vez por ventos tão cortantes
e gélidos quanto o daquela noite de 22 de março de 1975, quando estranhos
ventos soprados do Sul trouxeram consigo uma Revoada de habitantes do Fora, da
Alteridade nefanda que anima nossos pesadelos.
Fonte das Imagens
IMAGEM 1
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/mallet/historico
IMAGEM 2
BILINSKI, E. ; SCHENA, Valéria Aparecida . O desenvolvimento do Estado
do Paraná e a Colaboração do Intelectual Rocha Pombo na Idealização da
Universidade do Paraná (1853-1913). In: IX Seminário Nacional de
Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil: História da
Educação Brasileira: experiências e peculiaridades., 2012, João Pessoa.
IMAGEM 3
http://www.memoriaparanaense.com.br/2019/10/14/as-antigas-estacoes-de-trem/
IMAGEM 4
https://www.youtube.com/watch?v=yPTH03lzRjU&t=4383s
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