animaxenomoi

uma incursão à verdade imposta pelo estranho e externo ao homem

O HIPERVALE

     


A Névoa do Vale; enquanto o Vale está tomado pelas densas brumas, nos morros se apresenta a diafaneidade do firmamento

 
    É comum que se sonhe com a geografia conhecida, de modo que cada local que se conheceu e se viveu na infância sirva como representante de conceitos arquetípicos. A igreja da infância como representante do Sagrado, a casa da infância como o lar ou uma figura para a própria psique, a escola antiga como se representasse todas as escolas do mundo e assim por diante. E também sonhar com as ruas pelas quais já se andou, como a rua do quiosque junto ao Iguaçu, perto da Ponte de Ferro, onde tantas noites foram depositadas como formidável alimento para a memória. As ruas, ainda de paralelepípedo, molhadas pela chuva numa madrugada de primavera ligando o Concórdia ao Mirante. A escuridão reconfortante e silenciosa do Balneário. Todos locais que podem reaparecer nos sonhos, trazendo um pouco daquela essência ali deixada em inúmeras ocasiões, numa espécie de troca psíquica entre paisagem e inconsciente, servindo para cenários impossíveis e crípticos do sonho. Para mais além das numerosas especulações, a verdade é que não sabemos como se dá a relação entre geografia e psique. A geografia emulada pelo cérebro é apenas um cenário residual do que foi captado pelos sentidos humanos ou existe alguma troca ou comunicação a níveis inconscientes? Existe mais no inorgânico e no orgânico da paisagem do que imaginamos?

Essa questão surge como necessidade ao pensarmos a forma com que a geografia se manifesta em diferentes sonhos num lugar. Como os habitantes mais sensíveis intuitivamente interpretam a própria realidade dali e a conjugam numa linguagem onírica tão misteriosa? São várias as pessoas que sonham com o território local distorcido, deformado, aumentado, ampliado, como se, ao sonhar, desvendassem novas topografias, câmaras ocultas, terrenos escondidos, lugares que, ao acordar, parecem tão reais como a própria cama em que se dorme. Obviamente, são sonhos, mas poderia haver algo mais? E quando os diferentes relatos coincidem? Existe alguma fonte para se extrair esses conteúdos? A própria cidade também dorme e sonha? Existem sonhos compartilhados entre certos viventes escolhidos ou emparelhados por princípios por nós desconhecidos?

    Este não é um tratado sobre sonhos ou a psicologia dos mesmos. Aqui tentarei esboçar um tosco mapa dessa incrível nova topografia que chamamos de Hipervale e que, talvez, possa estar parelha com alguns dos seus sonhos. Posicionar que, além do inconsciente pessoal que anima nossos sonhos, talvez exista um elemento inconsciente coletivo vivo e pulsante a partir de uma região que compartilha raiz, história e terreno. Esta é uma investigação ativa do que pode se passar por essas terras em nível inconsciente – assim como são os outros textos dispostos aqui.

    Aspectos significativos do vale costumam envolver os morros, que imponentes cercam as cidades gêmeas, o Rio Iguaçu, que banha boa parte da região ligando as cidades a São Mateus do Sul e outros locais, e a própria história local com seus mistérios, contribuições de todas as partes do mundo e eventos bélicos e miraculosos do Contestado. A própria natureza de vale possui uma conotação psíquica específica, que muitos ligam a aspectos mais depressivos vinculados à umidade, aos banhados e à topografia da região. O vale é representado, às vezes, como a(pro)fundamento das disposições do humor e os morros como um elemento quase ascético de onde surgiu o conceito de Névoa do Vale, descrevendo as ocasiões noturnas onde, enquanto a cidade é tragada pela densa neblina, nos morros é possível se situar acima dela, contemplando estrelas que à cidade são completamente veladas. Observando dos morros, é como se o mundo acabasse logo ali, com a visão abarcando tudo que há para a psique mais enraizada, como se o Todo estivesse contido naqueles limites estabelecidos pelas formações montanhosas, encontrando como via de escape o caminho Sul que adentra Santa Catarina. Nessas terras, a umidade impera, com densas brumas a partir de maio, mais que nas outras cidades da região; é uma cidade onde a natureza da sua formação geológica favorece o acúmulo do ar frio, mais denso, rebaixando bastante as temperaturas e acumulando a névoa em suas baixadas. No verão, especialmente no centro, cada vez mais desprovido de árvores, o ar abafado sufoca quem anda por ali. Todos esses detalhes têm seu impacto na forma com que a psique elabora e reelabora o território em dados oníricos.

    Ao falar de Hipervale, são alguns lugares que surgem nos sonhos de múltiplas pessoas. Existem morros fantasmas que surgem da noite para o dia no horizonte e logo depois desaparecem, sem que se saiba de alguém que chegou neles. Muitas vezes, estão cobertos pela neblina, fazendo surgir somente o seu cume na distância, o que alguns mais atentos percebem e ficam sem compreender. Fala-se e uma outra Estação Ferroviária com muitos trilhos e sem cobertura, assim como uma sala misteriosa e inacessível no Castelinho. Outro fenômeno é o das grutas que levam a locais que a geografia não consegue explicar; por exemplo, entrar nas grutas do Morro da Cruz e sair em outro lugar. As grutas em si, ou paleotocas, já são alvo de muitos boatos sobre irem mais longe que seus limites atuais, tendo sido supostamente alteradas décadas atrás, talvez, assim, alimentando esses sonhos. Mais que isso, imaginar um caminho ctônico das grutas, muitas vezes associadas à iniciação, pode dizer de conexões de sentido entre significados mais profundos do vale. Inclusive, alguns sonhos falam de uma pessoa que, entrando nesses estranhos "portais", perdeu-se em realidades paralelas, talvez no próprio Hipervale, sumindo do mundo diurno que movimenta as cidades.

    No Hipervale, o Morro da Cruz dá acesso a locais bastante curiosos. Um deles é uma prainha semelhante à da ponte quebrada do Mallon, a qual conecta esse elemento montanhoso com o Rio, outro protagonista do Hipervale. Além disso, no Hipervale o Morro da Cruz possui uma trilha desgarrada daquela recente que leva ao mirante; a trilha do Hipervale faz saltar por um córrego pequeno, tomar uma estradinha e chegar até uma bifurcação que oferece duas opções: à esquerda, uma caverna onde habita uma serpente imensa e oferece passagem para outro caminho mais dentro da mata e, à direita, um caminho que sobe por cima da caverna para um andar superior da mesma onde há uma cachoeira secreta. Em outro caminho que transgride o terreno físico, indo à direita de onde tem a trilha principal, seguindo um certo caminho, o aventureiro acaba chegando, pela floresta, em uma estradinha que é seguida de um grande campo rasteiro. Nesse lugar, pode-se ver a cidade toda, porém não tem casas e nem sinal de vida. Inclusive, onças vivem nas redondezas. Nesse campo, faz muito frio no inverno e, por algum motivo, sempre que se chega ali, não importa a hora, não demora muito para que o céu se torne azul escuro e logo depois escureça.

Cruz localizada em meio à floresta no Morro da Antena
   
    A região do Morro do Cristo, por onde supostamente passa uma linha ley – assunto que requer mais pesquisas –, também é reapresentado no mundo inconsciente – ou astral? – de várias maneiras. Existe ali um chalé no Hipervale, um lugar de difícil localização e que traz um pavor à simples menção de ficar ali para pouso. Em algumas versões, esse mesmo local aparece com neve no fim de uma estrada que passa por ele e segue para um topo inexistente de morro, seguindo um caminho onde há pés de erva-mate pelo lado mais alto da estrada. É um local fácil de se perder e pouco explorado. Partindo dali, há como chegar no morro que fica após a Ponte do Arco, numa versão onde a região habitada das casas invade o que é a floresta ainda bem preservada, constituindo um lugar com vida própria e separada do resto da cidade, como se o rio fosse um limite intransponível.


    O Rio Iguaçu oferece um capítulo à parte na elaboração do Hipervale. Um cemitério antigo plantado numa ilha em meio a um alagado, onde só se chega de bote, lembrando o que muitos falavam sobre a Ilha da Formiga depois do Balneário. O Iguaçu cobre, nos sonhos, a região do Parque Ambiental, que se estende por um território imenso do Hipervale e onde é possível correr por amplos gramados que alternam com regiões inundadas e também onde, na noite, grupos incógnitos se juntam sob os plátanos para beber e jogar cartas. No caminho entre o Parque Ambiental e a ponte Domício Scaramella, há um chalé escondido após a mata que segue com a estrada. Lá há um ancião sábio e pessoas dadas ao alto conhecimento. Perto da Ponte do Arco, ainda no Parque, pessoas acampam com frequência, mas muitas vezes são vítimas de cheias repentinas do rio. Por algum motivo, muitas pessoas se sentem à vontade nas noites naquela região do Hipervale. Próximo à ponte Domício Scaramella, há um braço do Iguaçu que adentra em direção ao Hospital Regional. Nos Hipervale, esse trajeto é amplificado enormemente. Cruza amplitudes, mas sempre passando por locais desabitados povoados de salgueiros à margem, passando por corredeiras, lugares inóspitos e uma ponta de concreto. Não se sabe até onde esse rio segue, mas muitas pessoas o utilizam para lazer e mesmo para transporte.

    Outro local alvo do entrelaçamento real e onírico está no bairro São Pedro, compreendendo o Morro da Antena e os túneis, fazendo com que os trilhos passem por locais inexistentes e estranhas estruturas se ocultem na mata fechada. No próprio cemitério do São Pedro do Hipervale há uma história sobre duas garotas que teriam sido mortas por algum tipo de criatura desconhecida. Perto do local onde há uma pequena cachoeira no morro, próximo ao quartel, há um caminho que passa por riachos e trilhos de trem – no próprio morro –, chegando em um local com gigantescas árvores que mudam de forma conforme o sonho, aparecendo algumas vezes verdejantes, secas ou por vezes queimadas por motivos desconhecidos. Nesse morro também há um cemitério perdido, o que é interessante dado o fato de haver, no mundo físico, uma cruz coberta por um pano marrom em uma altura da floresta. Desse morro, muitos sonham com criaturas assustadoras que saem dali, talvez ecoando a devastação das matas que tem ocorrido nos últimos anos. Os trilhos desse morro, com seus túneis, também frequentemente povoam os sonhos, servindo de passarela para seres desconhecidos, ventos uivantes e fantasmas do Contestado.

    Talvez esse pequeno texto demande constante expansão à medida em que surjam novos dados dessa hipergeografia que cruza entre sonhos de várias pessoas que têm suas raízes incrustradas no chão úmido do vale. Talvez tudo isso soe como mera digressão partindo de dados efêmeros de mundos individuais do sonho, onde os dados semelhantes não são mais que coincidências alimentadas pelas próprias variáveis físicas e históricas da região. Todavia, o dever deste recanto obscuro da internet é alinhar dados, comparar fenômenos e sempre partir da hipótese de que algo mais. De que, sim, existe uma ligação que transcende a mera materialidade dos lugares; que o lugar é mais que suas dimensões; que há uma comunicação em nível inconsciente entre homem e mundo, entre homem e matéria. Esse texto mesmo é um sonho sonhado num local distante e banhado pela luz lunar prateada, água batismal dos lunáticos. A Lua é o país dos poetas e o banho lunar é o que banha o sonho. É nesse nível inconsciente que parece transcorrer uma comunicação poética e inconsciente que poetiza a paisagem em versos no mundo dos sonhos. É neste recanto obscuro da internet que à cidade é permitido dormir e sonhar, pois cidades que não dormem nunca sonham, e quem não sonha não consegue elaborar suas demandas mais íntimas e profundas.






  


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Rua Nilo Peçanha, Rua Hélia Carneiro, Avenida Abilon de Souza Naves, Estrada Braulina Pigato, Rua Hermenegildo Alves Marcondes



— Desculpe, Dom Juan, mas não consigo achar pé nem cabeça na sua explicação.
— Não consegue porque insiste em pensar nos sonhos em termos que você conhece: como aquilo que acontece conosco durante o sono. E estou insistindo em dar outra versão: o sonho é uma abertura para outras esferas de percepção. Através desse alçapão entram correntes de energias estranhas. A mente — ou o cérebro — capta essas correntes de energias e transforma em partes dos nossos sonhos.
(A Arte do Sonhar, Castañeda)






"Um dos interesses profundos dos livros de Castañeda, sob a influência da droga ou de outras coisas, e da mudança atmosférica, é precisamente o de mostrar como o índio chega a combater os mecanismos de interpretação para instaurar em seu discípulo uma semiótica pré-significante ou mesmo um diagrama assignificante: Chega! Você me cansa! Experimente ao invés de significar e de interpretar! Encontre você mesmo seus lugares, suas territorialidades, seu regime, sua linha de fuga! Semiotize você mesmo, ao invés de procurar em sua infância acabada e em sua semiologia de ocidental. "Don Juan afirmava que para ver era preciso necessariamente deter o mundo. Deter o mundo exprime perfeitamente determinados estados de consciência durante os quais a realidade da vida cotidiana é modificada, isso porque o fluxo das interpretações, normalmente contínuo, é interrompido por um conjunto de circunstâncias estranhas a esse fluxo". Em suma, uma verdadeira transformação semiótica recorre a todos os tipos de variáveis, não somente exteriores, mas implícitas na língua, interiores aos enunciados."
(Deleuze E Guattari, Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol.2)