Para além da superfície turística instalada sobre o afamado Morro da
Cruz em Porto União, há camadas mais profundas onde o Sagrado anuncia
seu nome numinoso entre estátuas, tocos de vela, árvores, grutas e
fontes santas. O próprio Morro foi considerado abençoado pelo monge
andarilho João Maria, que é tido como Santo na teologia popular na
região do Contestado. Vagando pelas cidades e povoados, ele fazia
milagres, profecias e espalhava sua boa palavra. Costumava abençoar
fontes de água, próximo das quais plantava cruzes. Aquelas fontes e
pocinhos passavam a ter um significado elevado para os habitantes das
proximidades, que iam até a fonte para resolver suas enfermidades e,
depois, agradecer ao Monge com velas e orações. Sempre foi o caso do
Morro da Cruz, com sua água sagrada onde por vezes as pessoas batizam
seus filhos, suas estátuas entalhadas em madeira maciça e as grutas
onde João Maria posou quando por ali esteve de passagem.
O local todo foi um pouco deslocado de sua
significância religiosa pelo mecanismo turístico, que converte a
paisagem em atração e, costumeiramente, dessacraliza este tipo de
local. As pessoas que vão até ali caminhar pelas trilhas são movidas
mais pelo espírito da curiosidade que por alguma relação íntima com o
sagrado, acabando por emporcalhar o local com lixo e postura de pouco
respeito com o significado santo do local. Independente das conotações
que uma reflexão sobre turismo e sacralidade nos levaria, o fato é de
que as pessoas vão até o Morro buscando o caminho de suas trilhas e,
sobretudo, a observação das grutas.
As grutas são, na realidade, paleotocas feitas por animais da megafauna
há mais de 12 mil anos. Provavelmente, as grutas foram escavadas por
alguma preguiça gigante que ali ficou. Passada a extinção dessas
gigantescas bestas – apesar de alguns acreditarem que alguns grupos
desses animais ainda vivem –, permaneceu seu legado na paisagem: grutas
que foram usadas por humanos ignorantes de sua origem muito tempo
depois. Naquele pequeno complexo de grutas encontrado no Morro da Cruz,
o Monge João Maria posou durante suas peregrinações. Sobre a gruta
principal, muito se fala sobre como costumava ser muito mais funda que
agora, alegando que, na década de 70, os militares mudaram sua
configuração e que havia até grades no fundo dela para que as pessoas
não avançassem a partir de certo ponto. Hoje, o fundo dessa gruta, que
deve distar uns 10 metros da sua abertura, consiste em um afunilamento
do teto que vai descendo gradualmente até chegar próximo ao chão,
deixando apenas um buraco de impossível passagem. Contudo, percebe-se
que, após esse declive do teto, após o buraco que fica ali, há mais um
espaço totalmente coberto de breu, sem permitir que se veja o quão
fundo alcançam seus domínios.
Os fatos relatados são alvo de muita especulação.
Pessoas comentam sobre as grutas levando até algum lugar – o que não
faria muito sentido –, sobre itens encontrados lá e ainda várias outras
coisas que não cabem aqui agora. Atualmente, próximo às grutas, há uma
passarela que foi construída para facilitar o trajeto daqueles que
caminham nas trilhas do morro. Infelizmente, esse 'aperfeiçoamento'
turístico acabou por estragar um pouco da estética do local e
dificultar o acesso às grutas em si. No entanto, não é das conhecidas
grutas que o texto deve se ocupar.
Para quem não sabe, o complexo chamado Parque do Monge é apenas uma
pequena parte de todo um morro que, ainda que no meio da cidade,
conserva uma grande área florestal nativa, apesar de araucárias e
outras árvores específicas terem sido cortadas no passado. O Parque do
Monge se liga, por trilha, até um mirante que fica no topo do morro, a
900m de altitude, onde há também algumas antenas. Ao redor do morro,
dependendo da parte, há conjuntos de casas que vão até o topo, mas em
outros lados do morro, as casas ficam apenas junto ao seu pé,
garantindo que haja muito terreno de mata fechada com alguma vida
selvagem – tatus, veados, lagartos e outros animais. Em seu caminho
acidentado de floresta, é possível se perder em trilhas abandonadas,
riachos que descem o morro, árvores antigas quase a cair e uma
escuridão úmida típica das florestas da região.
Os moradores mais antigos, sobretudo os que
habitavam ou ainda habitam o pé do morro, contam algumas histórias
curiosas, algumas das quais ficarão para outras oportunidades. Uma das
bem conhecidas entre a vizinhança mais antiga é a de supostos tesouros
ocultos na floresta do morro, ali mesmo no meio da cidade, no
tradicional bairro Santa Rosa. Ali descansariam, enterrados sob a
superfície terrosa desse gigante que vigia sempre a velha chaminé e o
majestoso Balneário do Iguaçu, tesouros de outros tempos, da época em
que tropeiros e viajantes cruzavam aquele território indômito. Tesouros
de padres, de ladrões que roubaram viajantes e, logo após esconder o
tesouro, foram emboscados, ou mesmo relíquias do Contestado. Nos
relatos há de tudo.
Uma curiosa história descreve um grupo de piás que, após ouvir um
desses contos, decidiu sair em busca de uma gruta que estaria oculta na
mata, próxima a uma antiga araucária. Após muito andar naqueles matos,
o piazedo chegou a uma árvore que correspondia à descrição e logo viram
ao seu lado o que parecia uma gruta em seu contorno rochoso, mas
repleta de uma terra que dava para notar ser um pouco diferente do
material do contorno. A gruta não era grande e, caso aberta, permitiria
que um daqueles piás de 12 anos passasse ali se curvando um pouco
apenas. Como havia começado a escurecer, eles pararam o serviço de
cavar, pegaram suas ferramentas e voltaram às casas pela trilha. No
outro dia, ao chegar lá, o local estava exatamente como antes de terem
escavado qualquer pedaço de terra. Era como se nunca houvessem tocado
naquela gruta! E isso seguiu por dias. Eles nunca conseguiam chegar até
o fim e sempre, no outro dia, o local voltava a ser como era antes.
Após alguma insistência, os piás desistiram da empreitada,
convencendo-se de que não havia nada ali e que a terra simplesmente
deslisava. Depois de abandonarem a empreitada, nunca mais localizaram
aquela gruta próxima a uma grande araucária no coração da mata.
Típica paisagem do coração da floresta úmida do morro
Apesar de, historicamente, nunca ter ocorrido um
conflito do Contestado naquele morro, pessoas relatam o achado de
equipamentos militares na mata e até ossos, o que é muito estranho,
pois o local está bem distante de qualquer reduto da Monarquia
Celestial. Alguns suspeitam que o grupo de revoltosos executou algum
tipo de manobra secreta naquela área e foi emboscado ou acabou por
emboscar agentes da República no local, deixando para trás corpos,
armas e objetos da época. Quando a gruta principal era algo ainda pouco
visitado, longe de qualquer pretensão "turística", um caminhante teria
achado, nas proximidades, uma adaga oficial da época e alguns ossos
jogados junto a pedaços de pano desgastados. Não se sabe que fim ele
deu nos objetos.
Há histórias ainda mais curiosas sobre o uso das
grutas maiores como câmaras iniciáticas místicas por parte de ordens
remanescentes do messianismo do Contestado. Lá seriam feitas iniciações
ao modo daquelas conduzidas em Externsteine, Alemanha, por místicos
antigos, fazendo com que a pessoa mergulhasse nas próprias escuridões
dentro da caverna em determinada época do ano e, depois, renascesse
como um iniciado do corpo místico da ordem em questão. Obviamente, os
ritos devem ser mais complexos e interessantes, mas pouco se sabe
disso, uma vez que, ao se tratar de ordens místicas remanescentes do
Contestado, realmente estamos a falar de ordens
secretas e não
hobbies preciosistas de burgueses entediados. Para os membros dessa
ordem, todo o morro é carregado de natureza mística, uma vez que a água
que dele verte é abençoada pelo Monge João Maria e dali penetra o solo,
evapora entre o ar e se espalha por toda a mata atlântica úmida e
pesada dali. Alguns ainda argumentam que aquele antigo casarão na
Avenida Santa Rosa, logo após a descida da entrada do Parque do Monge,
teria sido, em dado momento, centro dessa ordem, que levava a cabo
várias excursões para dentro da floresta, conduzindo seus ritos e
rezas. Até hoje se assume que parte do assombroso número de velas e
oferendas deixadas a João Maria são obra dos remanescentes dessa ordem.
Sim, ainda persistiriam esses estranhos vultos do Contestado a caminhar
pela mata escura em silêncio, buscando pelo morro restos do que lá foi
deixado, buscando sinais por eles esperados para que tomem as devidas
ações, ou procurando o que lá se perdeu e por eles é tido como de
direito.
Recentemente, como já mencionado, a prefeitura, num
ímpeto de tomar a dianteira do turismo, fez uma trilha repleta de
acessibilidade que liga o pocinho do monge às grutas e, por fim, ao
mirante que fica ao lado da cruz. O local está bem alterado. Por um
lado, as novas trilhas possibilitam ir mais longe e achar novas
entradas para o coração da mata, onde mistérios centenários se ocultam.
Por outro, há de se pensar o que os estranhos agentes que caminham por
aquelas matas não pensaram do fato e o que podem estar dispostos a
fazer como retaliação. Sabe-se que, no tempo em que as grutas eram um
pouco diferentes, maiores, pessoas comentavam de gente que sumiu se
embrenhando no breu da caverna, portanto há muitas coisas que se
considerar quando se lida com mistérios tão enraizados como esse, que
envolve cultos, religião e profecias sobre o destino dessa terra. O que
se pode ter como certo é que, como disse João Maria, há uma serpente
que habita o vale: sua cauda está no Morro da Cruz e sua cabeça está no
Morro do Cristo. Um dia, ela há de levantar e soterrar a cidade. Um
dia, a ordem que guarda os segredos da serpente e entregues por João
Maria há de reemergir e tomar seu local de direito na história,
cavalgando entre as nuvens pesadas do vale, num dia nublado ao lado do
exército celestial para varrer toda a desgraça que o dragão de ferro da
modernidade lançou sobre nós.
Pintura de Willy Alfredo Zumblick
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