animaxenomoi

uma incursão à verdade imposta pelo estranho e externo ao homem

O FEITIÇO DO VALE (MANOEL CLARO)

     


O Majestoso e Caudaloso Rio Iguaçu, vigiado por Cristo

 
    Recentemente, enquanto revirava meus documentos, encontrei umas antigas folhas que não recordo quem me deu, ou se foram presenteadas ao meu pai e este repassou a mim. Nestas folhas, encontro um poema exemplar de um poeta chamado Manoel Claro (1937), que deduzo ser daquela geração antiga que vivia de modo diverso em nossa região, sendo capaz de abstrair da natureza circundante sentidos mais sutis, ao mesmo tempo em que era possível viver a própria urbe de modo mais autêntico. Aquela geração que estava intimamente ligada ao sentido de um monumento de praça ou dos diversos marcos do município, num enraizamento que se perdeu nas gerações posteriores, cada vez mais distantes do próprio pago e mais próximas do mundo, de um mundo virtual e palpitante que dita outro passo para a existência. Nessa prática específica de abstrair sentidos mais profundos da paisagem, seja num poema, numa música ou de outro modo, faz-se uso da poesia, essa forma de pensar que pensa diferente da técnica e do seu modo de sempre calcular. Enquanto o pensamento da técnica calcula, vendo a paisagem como disposição composta por diferentes medidas, a poesia, o pensamento que medita, recebe a paisagem como profundo sentido e se mantém junto a ela para desvelar aspectos do próprio ser daquela paisagem. O formidável poema de Manoel Claro que reproduzo aqui, O Feitiço do Vale, traz perfeitamente essa conjunção poética que dota uma obra de qualidade que ultrapassa a si mesma, representando que ali o próprio ser da paisagem falou com o poeta, que surge como espécie de canal para os sussurros do Mundo. Quem sabe o poema possa despertar naqueles que vive latente a própria vida profunda do Vale, da sua natureza e do seu modo mítico de ser. 




 O Feitiço do Vale
(Manoel Claro)



I


Quando o Goiocovó* corria selvagem
por entre serras e matas densas,
e nas restingas se proclamava, pelas vozes estridentes da passarada,
a coragem e a bravura imensas
dos biturunas, caingangues, xocréns e caiguás;
no tempo em que as caiporas e boitatás
vagueavam pelas florestas sombrias,
deixando pegadas nas sangas e nos mitos,
e o romance de Jaíra e Piãuaçu
comovia os corações dos bravos guerreiros,
e Aguapé, enamorada de Anhariri,
fazia suspirar de tristeza,
as lindas cunhatãs das tribos,
Anhangá** plantava nhapindás e urtigas,
para ocultar dos olhos humanos
o caminho que levava
ao coração do Vale do Paiquerê

II

Aqui, neste caldeirão misterrioso,
neste Vale Mágico,
que Anhangá quis ocultar dos homens,
fervilham feitiços e quebrantos!
A Natureza faz poções de amor,
semeando, por todos os recantos,
encantos e sortilégios,
e em tudo faz recender cheiro de flor...
Embala turíbulos invisíveis,
em holocaustos benfazejos
às divindades das matas,
santificando aras singelas,
nos corações limpos de pecados e desejos,
de quem tem olhos de ver.

Levanta uma catedral sublime,
onde visões transcendentes explodem
e propiciam êxtases,
pondo nossas almas a nu.
Fazendo da preguiçosa correnteza do Iguaçu
uma colossal pia de águas bentas,
oferece em sacrifício
a hóstia sagrada do Sol,
e levanta aos Céus
o cálice verde de um pinheiro altivo,
aljofrado do vinho do orvalho da manhã!

E a claridade mística, feita de sortilégios e santidades,
desce da abóbada azulada,
enquanto no altar do morro,
o Cristo se corporifica,
abençoando o vale com o olhar...

Pela imensa nave dos morros circunstantes ecoa um solene coro de ruidosas aves,
dulcificando a eterna missa matinal!...

III

Enquanto nas mádidas profundezas
dos bosques tranquilos
pequenos altares naturais,
feitos de pedras rústicas,
cobertas de limo e musgos,
exaltam a santidade da Beleza;
enquanto faunos se divertem, tocando flautas
na voz suave dos pássaros canoros,
e náiades gargalham
no ruído surdo das fontes escondidas,
e sátiros, curiosos e irrequietos,
espiam por entre as folhas
a dança festiva das ninfas,
vestidas nas cores alegres e vivas
das asas das borboletas,
serpeando por entre morros,
na várzea levemente ondulada,
 o Iguaçu desvenda, numa curva mais bonita,
um enorme útero de sonho.
Ali, fecundada pelo engenho humano,
a Natureza concebeu duas gêmeas,
que na gestação do futuro,
crescem em seu ventre,
pois Deus, satisfeito e ufano,
soprou-lhes pelas narinas
o espírito de um povo audaz e nobre!

IV

Aqui se respira poesia,
que torce a lógica das coisas,
quer na bruma fria das manhãs de inverno,
quer nas tardes estivais,
coradas pelos galanteios
do vento apaixonado e terno!

Esse feitiço, no vale, se prolonga, quando à noite,
como que suspenso no espaço,
velando o sono e a mansidão da várzea,
entre o Céu e a Terra o Cristo flutua,
iluminado pelos holofotes,
pelos pálidos clarões da Lua,
e pelo mais pálido brilho das estrelas...

Mas a poesia se refina quando,
na mesa posta da mata alegre,
a Natureza ergue, vibrante, as taças de todos os pinheiros,
num brinde agradecido à bondade dos Céus,
e à eterna e indiscutível glória
dessa estirpe de gente altiva e forte,
de Porto União da Vitória!

*Goiocovó: outro nome indígena do rio Iguaçu
** Anhangá: o diabo indígena
*** Paiquerê: O Eldorado dos índios do sertão de Guarapuava


  


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"Johann Peter Hebel escreveu um dia: «Nós somos plantas que – quer nos agrade confessar quer não –, apoiadas nas raízes, têm de romper o solo a fim de poder florescer no Éter e dar frutos » (Obras, ed. Altwegg III, 314)."
[...]
"O poeta quer dizer: onde deve medrar uma obra humana verdadeiramente alegre e salutar, o Homem tem de poder brotar das profundezas do solo natal, elevando-se em direção ao Éter. Éter significa aqui: o ar livre das alturas do céu, a esfera aberta do espírito." - Heidegger





"O dizer projectante é poesia [ditado poético]: a saga do mundo e da terra, a saga da margem consentida pelo seu combate e, assim, do lugar de toda a proximidade e lonjura dos deuses. A poesia é a saga do não-estar-encoberto do ente. A língua de cada vez em causa é o acontecimento do dizer no qual irrompe de forma histórica para um povo o seu mundo, e no qual a terra é conservada como o que está encerrado. O dizer projectante é o que, no pôr à disposição do dizível, traz simultaneamente ao mundo o indizível enquanto tal. É em tal dizer que, para um povo histórico, são pré-cunhados os conceitos do seu estar-a-ser, i. e. da sua pertença à história do mundo." - Heidegger